🔹Fim de casamento: o amor, quem diria, foi parar na Justiça

A gênese de qualquer enamoramento, segundo Freud, é essencialmente narcísica. É que o amor consiste em supor o ideal de si mesmo no outro. Assim, criamos uma imagem ideal naquele a quem elegemos como objeto amoroso, que vem justamente completar o que falta em nós para chegarmos ao ideal sonhado. Por isso se diz, popularmente, que o que se ama no outro é a própria carência. No amor, prometo dar ao outro o que não tenho e, neste ato, me faço objeto de seu desejo.

O caminho natural do enamoramento é transformar-se em namoro, paixão e, quase sempre, em acasalamento. A “última” etapa do enamoramento, a conjugalidade, costuma muitas vezes transformar este ideal sonhado em pesadelo.

No casamento, quando se depara com o cotidiano, e o véu da paixão já não encobre mais os defeitos do outro, é que se constata uma realidade completamente diferente daquela idealizada. Pensa-se que houve engano na escolha do cônjuge ou companheiro: “Fui enganado”, “fui traído”, “meu casamento foi uma farsa” etc. etc.

Frases e lamentações desta natureza são constantemente ouvidas pelos advogados que trabalhamos com o Direito de Família. Instala-se então o litígio conjugal. As partes, não tendo capacidade para resolver seus próprios conflitos, transferem esta responsabilidade para um juiz. E o amor, quem diria… foi parar na Justiça!

Velha história

O Judiciário é o lugar onde as partes depositam seus restos. O resto do amor e de uma conjugalidade que deixou a sensação de que alguém foi enganado, traído. Como a paixão arrefeceu e o amor obscureceu, o “meu bem” transforma-se em “meus bens”.

É impressionante como as versões de um mesmo casamento apresentam-se completamente diferentes, segundo o ângulo de cada parte. Quem terá razão neste fim de casamento? Existe uma verdade para o litígio conjugal, ou são apenas versões que fazem a-versões?

O Direito, até recentemente, insistia em dizer que havia um culpado. Em geral, esta culpa era atribuída àquele que teve uma relação extraconjugal. Muitas vezes este culpado da separação foi, de alguma forma “empurrado” a fazer isto, pela falta de afeto e carinho, e se o fez é porque a relação já havia acabado. É a velha história: quem veio primeiro, o ovo ou a galinha?

Em outras palavras, quem traiu primeiro: aquele que não deu carinho e afeto, propiciando um espaço e esvaziando a relação ou quem foi buscar fora do casamento outra relação? Aquilo que o Direito considerava como causa de uma separação, podia não ser a causa, mas a consequência.

Emenda 66 e vazio inexorável

A discussão de culpa no ordenamento jurídico brasileiro foi sepultada em 2010, com a Emenda Constitucional 66, que simplificou o sistema de divórcio no Brasil. Eliminou prazos para o divórcio, acabou com o inútil instituto da separação judicial.

Foi um grande avanço. Substituiu o discurso da culpa, pelo da responsabilidade, afastando o Estado de determinar sobre questões de foro tão íntimo e privado. A culpa é paralisante do sujeito. E é muito mais fácil colocar no outro a culpa pelas próprias mazelas. Assim não me responsabilizo pelos meus atos. Essa alteração constitucional, ao trazer mais responsabilidade ao sujeito, é como se nos ensinasse: não é você quem me faz infeliz. Sou eu quem permito que você me faça infeliz.

Quando a conjugalidade chegou mesmo ao final, quando o amor e o desejo acabaram e não há mais interesses comuns para dar continuidade à relação, a separação, embora dolorosa, faz-se sem ódio e sem brigas. Mesmo assim, há sempre uma sensação de perda. E novamente o ser humano depara-se com seu inexorável vazio. Mas contra isto não há remédio. Somos mesmo seres de “falta”, e, portanto, algo em nós sempre faltará.

Não se pode ter tudo

O litígio conjugal, além de ser um sintoma de que algo ainda está para ser resolvido entre o casal, é uma tentativa de não perder nada. Todos os clientes nos dizem: “Só quero os meus direitos”! Mas estão sempre com a sensação de que estão perdendo algo e transferem e localizam esta perda para o valor da pensão alimentícia, na discussão de guarda de filho, no patrimônio etc.

Instala-se então o litígio para que um saia vitorioso, como se houvesse um perdedor e um ganhador. Ambos querem ganhar o máximo possível, como se pudessem tamponar a inevitável perda da separação. Não é possível ter tudo. Perde-se aqui, mas ganha-se ali. Em brigas de casais, não existe um vitorioso.

A separação, quando inevitável, como ato de responsabilidade, e às vezes um compromisso com a saúde, deve funcionar como um remédio, e também como um processo de libertação. Afinal, “se o anel que tu me deste era vidro e se quebrou…”.

Fonte: Conjur

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